terça-feira, 9 de dezembro de 2008

carta número um

para se ler com um cigarro entre os lábios e uma xícara de café nas mãos.


alice,
essa é a primeira de outras tantas cartas que mandarei. não. talvez essa seja a primeira de três ou quatro. ou ainda, talvez essa seja a única.
sei que empurrei à ti o fardo de arrancar de mim o 'se' e o 'talvez' mas não, baby blue, hoje vou mergulhar essa fina folha de papel numa grande bacia cheia até a borda deles.
há dez meses atrás eu roía as unhas. ah, sim, um segredo que não te contei. pois bem, eu as roía. comia até as pontas dos dedos. comia mesmo (mastigar, engolir). sugava o sangue que vertia da ponta de cada um e me alimentava do limo denso que se incrustava por debaixo delas (as unhas). limo esse que tu bem sabes, vinha do fundo do poço. eu morei lá por muito tempo sabe? dezoito longos anos. talvez eu tenha nascido lá, talvez tenham-me jogado, talvez eu tenha ido por conta própria há tanto tempo que sequer ficou preso nas minhas curtas gavetas de memórias. algumas vezes eu tentei sair, eu juro. às vezes eu sentia-me cansada de esperar, já tinha dúvidas se tu virias mesmo, se não eram ilusões. eu, que odeio ilusões e vivi delas. ou morri delas, sabe-se lá. o fato é que o corpo estava preso à vida, e a alma, morta.
há dez meses atrás eu gritava. eu gritava, sweety, mas eram berros mudos. quisera eu não ter tido boca pra que pudesse ter evitado a agonia de querer ensurdecer os ouvidos de alguém (fosse com apelos, fosse com ira) e resultar sempre em fracassos. em contenção. mas não. eu não tive voz por dezoito anos. e por dezoito anos eles não tiveram ouvidos. talvez ainda não tenham, mas daqui alguns parágrafos eu chego lá. -me prometi pôr em ordem os pensamentos dessa vez.
há dez meses atrás o único cheiro que eu conhecia era o podre que me inundava em dias de chuva e em dias de sol. a chuva trazia até o poço mais sujeira e sequer me recompensava lavando-me a alma. fazia-me sentir mais tonturas que normalmente com o fedor fétido que me entrava pelas narinas, orifícios, poros. e quando vinha o sol, quando eu achava que ao menos a luz ia secar-me os olhos: veja só, a podridão apodrecia. doce redundância que me enojava, jogando-me caída sobre o própio vômito.
nunca consegui acostumar-me com essas sensações: o cheiro, o sangue, o silêncio, o gosto, o vômito, a carne exposta, os gritos mudos, o desespero. ainda assim, eu continuei esperando. eu tinha fome de ti. eu tinha sede de ti. eu tinha que esperar. eu precisava esperar. eu queria esperar! e esperei.
então, tu veio. eu nem gritava quando tu chegou. e quando ouvi teus passos, não me apressei em te fazer notar que eu estava ali. porque eu sabia, meu amor, que tu sabia. então tu veio e te debruçou nos tijolos escuros-sujos-pretos do poço e eu te olhei e fazia um calor infernal e tu sequer esboçou repulsa ao me ver ali jogada-fraca-imunda num canto sem quinas. tu te lembras? sim, eu sei que sim, mas por favor permita-me que eu te relembre desse dia da forma como ele ficou entalhado na minha melhor gaveta (eu a fiz, especialmente pra ti: é de papel e madeira e gesso). lá de cima eu te via tão longe e tão perto de mim. era por ti que eu tinha esperado a vida inteira mas tu me parecia tão inalcançável nos teus all stars pretos até as canelas, vestida com os olhos mais brilhantes que eu já pudera ter imaginado, contornados em traços que delineavam perfeitamente o teu rosto. tu me sorriu. eu me perguntava se tu rias de mim ou pra mim e essa dúvida não me prendeu mais que um centésimo de segundo até que eu percebesse que sim, tu sorria pra mim.
eu abri a boca num intuito burro de te gritar alguma coisa e então lembrei que eu não tinha voz. fechei. formulei incontáveis frases que iam de 'por-favor-me-tire-daqui' a 'jogue-uma-corda' passando por 'eu-te-esperei-a-vida-toda-eu-te-amo-e-se-tu-puder-me-puxar-pra-cima...' mas antes que eu pudesse pensar numa palavra curta que emendasse tudo que eu queria te dizer (porque eu sentia coisas grandes e coisas grandes não cabem em palavras pequenininhas) tu pôs o dedo indicador nos lábios em sinal de silêncio e me disse:
-eu cheguei. diga ao teu coração que eu cheguei, que não se afobe, querida, que eu ficarei.
céus! mais que meus pensamentos, mais que minha voz, mais que meus ruídos: tu ouvia o bater do meu órgão mais bem guardado até então! eu o mantive pulsante por todos esses anos, vivo o suficiente pra tua chegada, intacto! eu queria (e queria muito) fazer o que tu me pedia, te obedecer cegamente, mas aquilo, meu grande amor, aquilo eu não podia controlar. meu coração batia, martelava, descompassava, enlouquecia, desesperava. meu corpo inteiro tremia. tentei me por em pé. que eu perdesse todos os dedos escalando as paredes úmidas, não importava, eu faria o que fosse preciso pra ir até ti -agora que tu estava tão perto e tão longe.
foi aí que tu fez o que eu não pude imaginar nos melhores (ainda que raros pois eu quase nunca dormia) sonhos em que tive com esse dia. tu desceu. dá pra acreditar? tu desceu! eu fiquei parada, perplexa, frágil. te assisti sentar na beirada do poço e se agarrar aos tijolos fracos vindo até mim devagar, dando-me tempo pra arrumar as coisas na cabeça, pra aproveitar o que eu via, pra acreditar.
o meu corpo não possuía qualquer tipo de líquidos se não o sangue até então, e quando tu pôs os pés no chão, firmes, e ficou me olhando ainda com as estrelas nos olhos e o brilho nos dentes eu me percebi aos prantos, em lágrimas. não tive forças pra me mover, e nem se fez necessário, pois como eu já disse: tu ouvia meus pensamentos. tu me abraçou e me segurou e eu fechei os olhos e consegui te abraçar também. tu me apertava contra o peito e me enlaçava entre os braços. eu guardei à ti todos esses sentimentos que tu me proporcionou. eu fiz questão de não me preparar pra eles ou imaginar como seriam. 'coisas grandes em palavras pequenas', não me caberia explicar tudo que eu sentira.
quando voltei a abrir os olhos, não havia mais limo. não havia mais tijolos. não havia mais sujeira. meu corpo inteiro tinha sido costurado e nele haviam inúmeras cicatrizes. abri a boca e ouvi minha própria voz. tu estavas segurando as minhas mãos. olhei primeiro pra tua boca pra encontrar teu sorriso, mas ele não estava mais lá. tive medo. então procurei saber nos teus olhos e o reencontrei. os teus olhinhos pequenos e escuros me sorriam brilhantes.
não me importei em saber como tu me tirou de lá. não fiz perguntas. não consegui falar (nem palavras grandes, nem palavras pequenininhas), mas eu sabia que se quisesse, teria voz porque tu tinha ouvidos.
foi aí que eu apertei tuas mãos e percebi que minhas unhas não seriam roídas mais. nunca antes eu sentira tantas coisas grandes, tantas coisas boas. nunca antes eu fora tão feliz.
eu te disse: 'eu não quero nunca mais voltar pra lá.'
e o que tu me respondeu bastou pra que em pequenas palavras eu entendesse grandes coisas -ainda acho magnífico isso que tu consegue fazer de expremer sentimentos em letras.
-nós não voltaremos lá.
tu estava lá o tempo todo! só não me ouvia por ainda não ter me visto pra que tivesses ouvidos, assim como eu não te gritava por ainda não ter te visto para que tivesse voz. nós nos esperamos, nós nos chegamos, nós nos tiramos de lá e costuramos uma à outra.

espero que tenhas lido com o marlboro entre os dedos finos da mão direita e a xícara de café quase frio na esquerda. de ti, minha doce alice, levarei pra sempre todas as melhores lembranças do presente.
eu te amo. eu sempre te amei.
beijos doces, famintos da boca tua.
stella.

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