domingo, 3 de maio de 2009

um coma de amor

um livro abandonado sobre o banco de concreto. a capa era de um papel preto que imitava camurça; passando os dedos dava pra sentir micro pedacinhos se soltando. 23 páginas. todas em branco exceto por uma única linha na contra-capa: agora tu és minha, mas eu preciso partir.

sentei no banco e coloquei-o no colo. fiquei esperando não-sei-o-quê. traguei três ou cinco cigarros e ninguém apareceu, nem nada aconteceu. caminhei as exatas quatorze-quadras-e-meia, empurrei o portão de metal, ouvi o 'CLAC' do trinque fechar, subi as escadas pulando os degraus aos pares contando "três. cinco sete nove onze cinqüenta-e-três". quando finalmente entrei, estava cansada, suada, e cheia de um pozinho preto espalhado pela blusa. nem percebi que durante todo o percurso eu agarrara o livro contra o peito. coloquei-o sobre a mesa ao lado da janela. enquanto tomava banho, ele não me saía da cabeça. quem teria escrito? pra quem? quando? por quê não havia história e sim um final? o que teria acontecido pra tê-lo abandonado? eu não tinha nenhuma resposta. preparei um belo copo de vodca, acendi um cigarro, engoli alguns comprimidos brancos e me sentei em frente à mesa. escrevi na primeira página:

Astrid L.
Rua dos Ipirangas 3005 / 203 – Cidade Velha


deitei no chão do quarto empoeirado – precisava de uma bela faxina, eu sabia, só não tinha saco pra isso, que tempo eu tinha e de sobra – e assisti o céu mudar de cor, escurecer. daí em diante nada do que eu vi pode ser descrito como realidade. as alucinações me embalaram até que eu dormisse e tivesse sonhos na velocidade da luz, com cores que ninguém nunca viu.
acordei por volta de três da tarde do dia seguinte com solavancos na porta. achei que ia voar apartamento adentro, aquela merda. eu digo apartamento é pra ficar bonito, porque não passava de um cômodo com um fogão de duas bocas, uma mesa velha e um colchão. abri:
-escuta aqui, ô, drogadinha. tu não vai me pagar não, é? já passa de dois meses com as contas atrasadas, vou te pôr pra fora, tô falando.
-dá um tempo dona zica, que a coisa não ta fácil pra ninguém. vou dar um jeito de pagar a senhora, prometo.

-promete, promete. de boas intenções o mundo tá cheio. – ela saiu murmurando pelo corredor palavras ininteligíveis, provavelmente ofendendo meu caráter, que, a essa altura, já não valia mais que o muquifo onde eu tinha vindo parar.
meti uma calça, peguei a mochila com tudo que eu tinha e saí porta afora. lugar que nem aquele não dá pra deixar nada dando sopa, não – ainda que tudo que eu tinha não valesse nada. dois minutos depois voltei correndo e peguei o livro que tinha esquecido ainda sobre a mesa. fui até a praça onde o havia encontrado e deixei-o exatamente no mesmo lugar. sentei num banco distante – mas de onde tinha a visão perfeita – esperando o dono. esperei um bom tempo, mas ninguém veio. já começava a escurecer quando desisti. fui pra avenida sem vontade nenhuma, mas há dias em que não restavam opções melhores. tenho cara de adolescente na puberdade, então não demorou meia hora para que um carro parasse:
-tá quanto?
-cem.
-sobe aí, puta. – entrei no carro e pude ver o rosto. era um desses caras que saem em colunas sociais de jornal da região, sabe? tinha dinheiro, família, coisa e tal. pelo estilo nem achei que fôssemos pra um motel tão vagabundo. o filho-da-puta me comeu, me bateu, me xingou e não queria pagar! falei que ia no jornal, que dizia que ele tinha me molestado, e ele riu.
-molestar? e desde quando puta de esquina sabe o que é isso? olha como fala comigo. tu nem vale cem.
-me dá minhas cem pratas. – não tenho medo de otário não, nunca tive, além do mais, pior do que eu to, não fico.
lembrei de onde o conhecia. era deputado. eu já podia ver as manchetes: "deputado molesta menor de idade e é preso, garota de programa recebe auxílio financeiro". não nasci ontem, mesmo que eu tenha fantasiado, eu sabia que não era assim. manda quem pode e obedece quem tem juízo. eu não tenho. o cara reclamou, humilhou e riu, mas no fim das contas não queria escândalo à toa – sabe como é, época de eleição – e acabou me dando as cem pratas. filho-da-puta é filho-da-puta né. sem a ironia do trocadilho.
eram quase dez da noite. saí sozinha do motel, o cara deixou a conta paga e eu fiquei lá, me lavando e tentando dar um jeito nos machucados. "pra primeira vez, até que não fui mal" pensei comigo.
passei na "praça do livro" antes de ir pra casa. ele ainda tava lá, mas alguém tinha mexido. não continuava no mesmo banco. peguei de volta, e só abri quando tranquei a porta e sentei à mesa da janela. tinha um envelope com meu nome escrito e dinheiro dentro. não contei, mas pelo que eu percebi era o suficiente pra pagar dona zica. embaixo do meu nome e endereço tava escrito:

não preciso que me dê endereços, astrid. sei onde moras, o que fazes e só me falta descobrir de que gostas – além dos livros que roubas por aí. te conheço de outras vidas, e tu pode ser minha se quiseres. mas tu ainda não quer. eu te espero, te espero há tanto tempo.
p.s.: não se ofenda com o envelope, só te peço que não te humilhe dessa forma como fez hoje outra vez.


entrei em pânico. então tinha alguém que sabia que eu existia? estivera me seguindo? me esperava pra quê? quem é esse autor que só me dá perguntas sem respostas? era uma letra tão bonita, tão bem-feita... e o modo de escrever? tão educado... senti vontade e me esforcei pra relembrar a gramática que eu soubera tão bem em tempos de colégio. abaixo dele:

como é que é? tu me segues, então? e não, não quero ser de ninguém, que não fui feita pra andar laçada. gosto da liberdade, nunca serei tua nem de qualquer outro.
de outras vidas? acaso és louco ou o quê?
p.s.: sei me virar sozinha.


coloquei o envelope de volta e deixei o livro na praça ainda naquela noite. peguei de volta só uns três dias mais tarde. não havia quase nada escrito, apenas uma folha de plátano colada na segunda página, com os míseros:

19/05 – tu estavas mais linda ainda hoje, deitada sob a imensidão de plátanos tristes, como nós.

nas semanas seguintes, nos escrevíamos quase todos os dias. eu esperava ansiosa por respostas que nunca eram às perguntas que eu havia feito, e sim, eu sabia, sobre algo bem maior do que o que eu poderia ver. por diversas vezes tentei marcar encontros pessoais, mas ele nunca falava sobre isso. graças à ele eu conseguira um bom emprego numa locadora que ficava no mesmo prédio da minha biblioteca preferida. às vezes ele roubava livros pra mim e os deixava no banco, à minha espera. eu não tinha mais dívidas e havia me mudado para o prédio em frente ao antigo. há quase três semanas não usava nada, nada. tudo parecia estar indo bem, talvez não fôssemos mais tão tristes.

13/07 – é inverno, astrid. estamos na vigésima primeira página, é hora de eu te beijar. meu café é amargo – só sete gotas de adoçante – não muito quente. levarei cigarros, meu amor.
havia uma marca de café propositalmente derrubado na página.

estatizei. ele finalmente queria me encontrar. sem perceber que eu estava me afogando, respondi:

sem teu rosto ou tua voz, me fizeste apaixonar por ti no mais íntimo de teus seres. és em mim toda a poesia antes esquecida. te espero ao pôr-do-sol, tu bem sabes onde. todo o meu amor, um beijo em teus olhos.
p.s.: surpreenda-me.
deixei a chave da porta entre as páginas já escritas.


dormi muito mal nessa noite, tamanha ansiedade. o sol rasgava o céu sem pudor e iluminava o quarto aos poucos, inundando o cômodo. tudo continuava uma bagunça e eu tentei melhorar a aparência, mas de nada adiantaria, porque, ele sabia. de tudo, ele sabia. não consegui comer, cada minuto era um martírio à espera dele. sentei no parapeito da sacada com as pernas soltas no ar e acendi um cigarro. o sol começava a se pôr. ele não viria.
"clic" a porta sendo aberta. hesitei, não ousei olhar pra trás. ele me abraçou pela cintura e segurou bem forte, tão forte que eu tive a certeza que nunca, de maneira nenhuma eu cairia se suspensa por aquelas mãos. fechei os olhos e as toquei. eram macias, os dedos eram finos, os pulsos eram frágeis e cada pêlo do braço estava ouriçado. eu podia sentir nas pontas dos meus dedos. desci do parapeito e fiquei frente à frente com aquele estranho que agora era tão meu. ele passou as mãos pelo meu rosto e pude senti-lo sorrir.
abri os olhos e vi os olhos do meu amor, devorando os meus. clarice estava mais linda que nunca àquele pôr-do-sol. ela tinha o olhar mais lindo que eu já pudera presenciar. eram olhos de mil anos, tão tristes. por si só poderiam iluminar toda uma cidade, tamanho brilho. uma constelação engavetada. deciframo-nos centímetro por centímetro, minhas mãos decodificando o corpo dela, os olhos dela devorando minha alma. sua boca tinha quase o formato perfeito de um coração que se desfazia em sorrisos pequenos, e era de uma textura indescritível. senti cada pedacinho de pele dela na minha, senti cada gota do amor de clarice inundando meu corpo, me transbordando. e transbordei nela também. nunca antes houvera amor como o nosso. passamos a noite inteira juntas, abraçadas, nuas iluminadas apenas pelo luar que rasgava entre os vãos da janela. eu ainda não pudera ouvir sua voz, então ousei:
-eu te amo, meu amor. – ela permaneceu calada, e me deu o melhor beijo que eu pudera receber. tentei outra vez. – me diz teu nome?
clarice levantou e se vestiu, beijou meus olhos e foi embora.
fiquei sozinha no escuro, tentando saber se tinha sido real – ou não. acabei adormecendo e sonhando com clarice e suas constelações. voltei à praça, ao livro:

o que estás fazendo comigo? não me amas mais? teu amor acabou? foi só um conto, ou um sonho? sequer sei o teu nome. não me deixes, amor, por favor.

foi esse o final de uma longa carta que escrevi à ela, ocupando toda a vigésima segunda página. busquei a resposta no final da tarde:

vigésima terceira página, astrid. nunca existirá amor como o nosso. serei sempre tua. não tenha medo, te amei em todas as vidas, te amarei para todo o sempre. – um pequeno espaço em branco, e, (eu havia esquecido!) – agora tu és minha, mas eu tenho que partir.

encerrando a contra-capa, estava escrito: por astrid L. e clarice B.

depois disso, tudo que lembro é de acordar amarrada por fivelas todos os dias e todas as noites aos prantos, gritando por clarice. ano passado disseram que eu poderia viver bem sem causar danos à sociedade, então me deram alta. me entregaram apenas uma muda de roupa e uma mochila desgastada – segundo eles, era o que eu tinha quando fui internada – que dentro continha uma única coisa: um livro. a capa era de um papel preto que imitava camurça, com letras garrafais vermelhas entitulando: "UM COMA DE AMOR".