terça-feira, 8 de setembro de 2009

cacos de alice

um pequeno flash-back:
eram duas crianças. um garoto com seis anos, uma garota com quatro. ela puxava com força uma corda que corria sobre um rolamento preso ao teto, ele pendia com a mesma ao redor do pescoço. seu corpo sacudia-se em convulsões inconscientes, o rosto roxo-azulado, urina pingando dos sapatos pretos até o chão. alice-criança sorria entre fios suados de cabelos negros que iam até abaixo dos ombros.


“ele tinha cabelos louros como os teus.” – alice tragou o cigarro e olhou para stella. – “depois disso, meus pais foram internados. mataram-se alguns dias depois, ambos da mesma forma: enforcaram-se com os fios do telefone.”
stella tinha nas mãos a magnum.44, e girava o tambor distraidamente. os olhos fixos nos da outra. bebeu café, passou a ponta da língua pela borda da xícara, limpando o visco fino que ameaçava escorrer, escuro. num sussurro quase inaudível, disse: “teus segredos são agora meus.” não haviam lágrimas ou drama, só essa cumplicidade crua que se tem quando duas pessoas sentem o que elas. esse mais-que-amor que nunca outro alguém poderia entender, que nunca houve antes noutras histórias.
um estrondo curto e seco irrompeu pela fresta da janela e a luz fraca do abajur apagou. lá fora chovia torrencialmente. ficaram então as duas na completa escuridão, os olhos de uma encarando os olhos da outra, ainda que não se pudessem ver. deram-se alguns momentos até que acostumassem-se ao breu. stella acompanhava o ponto vermelho da brasa do cigarro de alice descendo e subindo lentamente, crescendo quando tragado, depois pequeno outra vez, parado sob o braço da poltrona. não via sequer o vulto, mas sabia que alice embalava o copo no ar, em círculos, dissolvendo sem perceber a vodca no café. ou o inverso. “três-quartos-de-vodca-para-um-de-café” ela sempre dizia.
alice observava sem poder enxergar os dedos de stella puxarem a pele dos lábios. arranhava, machucava, estuporava a boca até que sangrasse, e então sugava o líquido vermelho.
-qual era o nome?
-de quem?
-do teu irmão.
-ian.
stella andou até a poltrona vermelho-sangue no outro lado do cômodo, tocou os joelhos de alice com as pontas dos dedos e sentou em seu colo, acomodando levemente a cabeça em seu ombro. alice tirou do bolso uma cartela de comprimidos, entregou metade à stella (que pegou o copo da sua mão e engoliu-os num grande gole) e enfiou os outros na boca, mastigando devagar. os braços finos entrelaçaram a cintura da outra, e juntas entraram num jogo de cores e sensações. deliraram então, num silêncio pesado, até que adormecessem quando o sol rasgava o céu numa manhã de setembro.

4 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom mesmo!
;]

bruna f. disse...

y control, y control. se tu me descrevesse seria um esboço melhor do o original. gosto muito de mim quando sou feita por ti. te amo tanto sabe

Anônimo disse...

Lendo novamente... que macabro o início; tem outra história duma criança que mata outra e conta os traumas que gerou na guria, não lembro o nomedo livro, mas é bem interessante também.

Faz bem ler mais uma vez, hehe.
Manda outro, beijo.

Ferdi disse...

Perturbadora e fascinante como sempre.
Céus.. apaixonante.